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O SEU ESPECIALISTA
⌚ 07.10.2020
Renato Nunes é especialista em Medicina Física e de Reabilitação. Já o conhece?

Licenciado em Medicina, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, desde 1997, Renato Nunes é o coordenador da CONSANAS Hospital da Prelada, unidade de reabilitação do Acidente Vascular Cerebral (AVC) desenvolvida em parceria com a Boehringer Ingelheim.

Médico especialista em Medicina Física e de Reabilitação (MFR), tem diferenciação nas áreas de Acidente Vascular Cerebral/Lesão Encefálica Adquirida, Reabilitação Neurológica, Reabilitação Cognitiva e Reabilitação Pediátrica.

O Editor-Chefe da Revista Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação (desde 2013) e Diretor/Editor-Chefe da Revista Esculápio - Revista Científica de Saúde da Misericórdia do Porto (desde 2016), integra ainda o Conselho Editorial do Journal of Physical and Rehabilitation Journal.

Leia a entrevista e fique a conhecer melhor o seu especialista.


1. Qual foi o tratamento fora do comum ou o caso clínico mais marcante que já teve?

Comecei a minha carreira como especialista em MFR em 2004, no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Hospital Rovisco Pais, na Tocha, quando este ainda estava no início do seu percurso para se tornar um hospital especializado de referência em Portugal.  

O interesse pelas doenças do cérebro, em especial pela lesão encefálica adquirida, havia começado ainda durante o internato médico e progrediu no Hospital dos Covões, em Coimbra, onde me dediquei ao trabalho na Unidade de AVC do serviço de Neurologia. O Hospital dos Covões partilhava organização assistencial com o Hospital Pediátrico de Coimbra, como parte do antigo Centro Hospitalar de Coimbra. Além de me ter envolvido na instalação da Unidade de Reabilitação Pediátrica do novo hospital, inaugurado em 2011, dediquei os anos seguintes à diferenciação em reabilitação pediátrica, área considerada então como carenciada ao nível nacional. 

Foram grandes os desafios e muitos os doentes que marcaram esse período, em especial pelas particularidades inerentes à idade, à fase do desenvolvimento e às consequências da lesão num cérebro imaturo, que se encontra no seu complexo e sequencial processo de desenvolvimento, em que a exposição a determinados fatores ambientais permite a aquisição adequada de competências percetivas, cognitivas e sociais. A lesão pode comprometer a aquisição de funções específicas, com impacto funcional, por vezes só percetível anos mais tarde. Na criança, reabilitar é muitas vezes habilitar, uma vez que há competências que, pela idade e fase do desenvolvimento, podem ainda não ter sido adquiridas.  

Já na Misericórdia do Porto, o projeto Centro de Reabilitação do Norte, que acompanhei desde o início, revelou-se uma oportunidade de crescimento profissional e pessoal. Atingiu-se a excelência em medicina de reabilitação, com uma dinâmica de intervenção verdadeiramente integrada e abrangente numa diversidade de patologias graves, maioritariamente neurológicas, que continuam a ser atualmente causas importantes de incapacidade do adulto e da criança. Foi marcante a experiência de trabalho com doentes com traumatismo cranioencefálico (TCE), um problema de saúde major nos países desenvolvidos, resultado do elevado número de acidentes de viação e do aumento crescente de outras causas, relacionadas com a violência e também das quedas no idoso. Passei a ver o TCE não como um evento, mas como uma doença crónica, o que é visível na persistência de défices e alterações ao longo da vida. 

Foi pioneiro o trabalho de organizar uma unidade especializada, com diferenciação na intervenção na grande variabilidade e complexidade dos défices. Convivi com muitas histórias em que a vida muda abruptamente - e as expectativas se ajustam - por vezes de forma inesperada, às possibilidades de recuperação. Adquirimos em equipa competências em áreas pouco desenvolvidas na nossa prática clínica, acompanhámos a evolução científica, em especial na intervenção neurofarmacológica como forma de modular o funcionamento cognitivo. Experiência que me acompanha até ao presente e constitui também ela o suporte deste projeto maior que é a CONSANAS do Hospital da Prelada. 


2. No seu serviço, o que diferencia o Hospital da Prelada dos outros hospitais?

Quando há 18 anos cheguei como médico interno ao Hospital da Prelada, o serviço de Medicina Física e de Reabilitação era não só o maior serviço com internamento da região Norte, mas sobretudo uma escola de trabalho, dedicação, rigor, avanço científico e organização. Sem dúvida, o melhor serviço para fazer formação e, seguramente, para um dia trabalhar, o que se verificou mais tarde em 2012. 

A intervenção totalmente centrada no doente é acompanhada pela humanização dos cuidados. Algo que só se consegue com o trabalho em equipa, onde cada um, na sua área de conhecimento, tem um papel fundamental no resultado final.

O projeto de organização da CONSANAS, em 2019, reflete a experiência de mais de 30 anos do Hospital de Prelada e a orientação no sentido da diferenciação e da inovação.  

O AVC continua a ser uma causa importante de morte e morbilidade em Portugal, sendo alvo de dedicação específica, em especial na prevenção e tratamento. Muitos sobreviventes de AVC necessitam de programas de reabilitação especializados em que a precocidade e a intensidade são determinantes para o sucesso da intervenção terapêutica. 

A CONSANAS apresenta-se como uma resposta inovadora, em modelo de intervenção e em tipologia de cuidados, disponibilizando, além do internamento, o hospital de dia para doentes não internados. Toda a atividade se desenvolve em equipa multiprofissional, segundo uma abordagem funcional integrada e uma intervenção abrangente (avaliação e tratamento de todas as áreas de défice). Os programas terapêuticos são individualizados e organizados tendo em conta o resultado da avaliação, os défices apresentados, as caraterísticas do doente, o seu potencial de recuperação e as suas expetativas, e orientados segundo objetivos específicos, mensuráveis, realistas e atingíveis num período definido. Este modelo privilegia a intervenção em doentes graves e moderados em fase subaguda do processo lesional. 

Além duma equipa experiente e especializada e de estruturas adequadas para o internamento e diferentes intervenções terapêuticas, é fundamental a aposta em equipamento avançado e novas tecnologias de otimização terapêutica, como o dispositivo de treino de marcha suspensa robotizada, o exoequeleto na reabilitação funcional do membro superior, a eletroestimulação neuromuscular da deglutição e equipamento informatizado de treino cognitivo. 


3. O que considera de mais relevante para a sua prática clínica?

Em reabilitação, o mais importante é que o doente regresse à comunidade no seu mais elevado nível de participação familiar, profissional, social e comunitária. Trata-se de retomar e adaptar os diferentes papéis às suas atuais capacidades e cumprir as suas expetativas mais relevantes enquanto sujeito biopsicossocial. Somos mais bem-sucedidos neste caminho se dermos a mesma atenção a todos os problemas, conhecendo o impacto que cada limitação tem para a vida do doente. 

Hoje não é aceitável tratar problemas isolados sem a devida integração com os outros domínios, quase sempre implicados e interferentes. As alterações neuropsicológicas dependem da topografia e gravidade lesionais, são influenciadas por caraterísticas premórbidas - nomeadamente a reserva cognitiva - e pelo meio ambiente natural, sendo que o seu impacto pode traduzir-se na autonomia funcional, nas relações familiares e sociais e na participação a nível profissional e escolar. O processo de reabilitação deve contemplar a adequada identificação das alterações neuropsicológicas, como a memória, a atenção e as funções executivas. A reabilitação cognitiva deve fazer parte de qualquer programa abrangente de reabilitação de AVC. A seleção das estratégias e recursos a utilizar depende das caraterísticas, interesses e competências do doente, podendo ser alteradas ao longo do processo de acordo com a adesão e/ou evolução revelada pelo doente. Outra parte importante do programa de reabilitação é a intervenção neurofarmacológica, com resultados significativos na modificação de défices cognitivo-emocionais. 


4. Como vê o futuro da prática clínica na Medicina Física e de Reabilitação?

A MFR enquanto especialidade médica e simultaneamente área da prestação de cuidados de saúde, encontra-se em profunda transformação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) assume o desafio como global quando lança em 2017 a iniciativa "Rehabilitation 2030", em que se promove o investimento e a expansão dos cuidados de reabilitação como forma de realçar a transversalidade do seu perfil clínico. 

O acesso à reabilitação é hoje um direito universal reconhecido para todas as pessoas com qualquer condição de saúde que comprometa a sua autonomia e funcionalidade e/ou limite a sua participação na vida na sociedade. De facto, a transversalidade da MFR resulta em primeiro lugar da sua intervenção basilar em cuidados de saúde, relevante para todas as áreas clínicas e marcada pela importância das suas múltiplas áreas de intervenção. Da patologia neurológica à doença cardíaca, da ortotraumatologia à disfunção vesicoesfincteriana, a MFR é uma especialidade que se articula com todas as outras, não na perspectiva da doença, mas das suas consequências, estruturais, funcionais, e sobretudo, em todas as alterações que tenham impacto no doente e no seu entorno.  Esta intervenção é válida para todas as idades, adaptada aos problemas específicos de cada população e orientada para a crescente diferenciação. 

Um dos maiores desafios que enfrentamos atualmente é a continuidade de cuidados. A reabilitação começa na prevenção e intervém em todas as fases do processo lesional, sendo fundamental que existam equipas de reabilitação em todas as tipologias de cuidados de saúde. Os hospitais de cuidados agudos devem garantir a precocidade do início da reabilitação e orientar os doentes para cuidados mais especializados em centros e unidades com diferenciação em patologias mais prevalentes e graves e vocacionadas para programas intensivos de fase subaguda. Facilitar o acesso a cuidados diferenciados implica melhorar a articulação entre os cuidados de fase aguda e os centros de reabilitação. A continuidade pode fazer-se para instituições de transição com menor diferenciação em reabilitação, mas o processo de reabilitação prossegue até ao regresso ao domicílio e à comunidade. A existência de equipas de reabilitação nos cuidados de saúde primários é fundamental para garantir a continuidade de cuidados, contribuindo para a reabilitação de base na comunidade e para a plena integração em todos os domínios da vida em sociedade, monitorizando e garantindo uma participação ativa de todos os doentes. Isto implica também criar estratégias que permitam optimizar o regresso à escola, ao trabalho, à vida familiar e social. Implica que os serviços e equipas de reabilitação sejam acessíveis, inclusivos, abrangentes e focados na promoção da saúde e de uma vida com qualidade.